Um encontro com a literatura…
“Tenho saudades de Pindela. Vejo daqui, deste quarto com vista para a Rua de S.ta Catarina, o vosso largo vale verde-negro, a casa, em baixo, antiquada e grave, meio adormecida entre as árvores, e a capelinha a branquejar lá no alto […]. Abraço apertado a vós ambos, jóias, do Vosso do c. Eça de Queirós”.
Este é um excerto retirado de uma das muitas cartas redigidas pelo escritor Eça de Queirós no Grande Hotel do Porto, dirigida ao diplomata Vicente Pinheiro Correia de Melo, Visconde de Pindela, e ao seu irmão, o escritor Bernardo Pinheiro Correia de Melo, Conde de Arnoso. A vista a partir do quarto de Eça para a Rua de Santa Catarina denuncia a localização do Grande Hotel, na artéria mais frequentada da cidade e, curiosamente, aquela em que viveram algumas figuras importantes da literatura portuguesa do século XIX, como Camilo Castelo Branco, Arnaldo Gama e António Nobre. Facilmente os imaginamos a circular nas proximidades deste hotel, numa rua por onde se movimentaram, ao longo de décadas, outros nomes da literatura e das artes, a caminho de um dos mais belos cafés do mundo, o Majestic, situado a menos de 100m do Grande Hotel. Destacamos entre estes os escritores José Régio e David Mourão‑Ferreira e os artistas plásticos Júlio Resende e José Rodrigues.
De fachada vitoriana, o Grande Hotel do Porto alia harmoniosamente o conforto e o luxo do fin de siècle oitocentista, destacando-se a porta giratória da entrada, a ornamentação glamorosa com veludos, espelhos, lustres e colunas em mármore. Dotado de “commodos para todos os preços, serviço distincto e um grande numero de confortos” (OCommercio do Porto, 1880), evidencia-se, nos tempos primordiais, a existência de balneários, também abertos ao público, e cuja referência encontramos no romance A Filha do Capitão (2004), de José Rodrigues dos Santos:
“Como não havia ligação ao Minho durante a noite, foram dormir ao Grande Hotel do Porto, na Rua de Santa Catharina, um edifício construído especificamente para ser uma unidade hoteleira e que oferecia aos hóspedes um sofisticado anexo para banhos e duches”.
O Grande Hotel do Porto distingue-se, assim, pelo seu valor arquitetónico e cultural, mas também pela qualidade das instalações e pela sofisticação. Segundo Hélder Pacheco, na obra Porto (1984),
“ladeando a travessa que se chamava das Pombas, ergue-se o Grande Hotel do Porto que no século XIX fazia a admiração dos visitantes”.
Uma admiração que aqui terá atraído, por exemplo, D. Pedro II (ex‑imperador do Brasil e filho de D. Pedro IV), que aqui se refugia com a esposa – D. Teresa Cristina –, aquando da queda da monarquia naquele país, em 1889. A memória dessa passagem real pelo Grande Hotel do Porto fica para sempre registada com a atribuição do nome de D. Pedro II ao restaurante pelo qual terão passado inúmeros hóspedes mais ou menos conhecidos. Destacamos o poeta Eugénio de Castro que, numa missiva de 17 de agosto de 1903, refere ir ao Porto, marcando encontro com o destinatário no Grande Hotel:
“Querido Amigo: Parto para o Porto amanhã, 3ª feira, devendo ahi chegar ás 7 e 49 da tarde. Se isso não lhe causar grande transtorno, mto obsequiará apparecendo áquela hora no Gde Hotel do Porto, para marcarmos a primeira sessão. Abraço-o”.
Também o poeta Teixeira de Pascoaes é hóspede habitual do Grande Hotel, fazendo alusão a esta unidade hoteleira na biografia romanceada de Santo Agostinho (1945):
“Sobe a rua dos Clérigos, e passeia na Via Láctea. Almoça no Grande Hotel do Porto, e não é milagre se for jantar, no mesmo dia, com Plutão, no seu tartárico palácio”.
Outro espaço emblemático do Grande Hotel do Porto é o “Salão das Colunas”, que homenageia diversos escritores do Porto, como Almeida Garrett e Júlio Dinis, e outros que, não sendo da região, se hospedaram no hotel, como Luísa Dacosta e Lídia Jorge. Na dedicatória que faz ao hotel, datada de 10 de maio de 2014, Lídia Jorge refere:
“Muito grata pelo acolhimento neste Hotel, o Grande de outrora e o Grande de hoje. Sempre que seja possível, aqui hei-de voltar, para desfrutar deste ambiente antigo que faz a ponte com o Futuro desta cidade […]. Até breve, até sempre”
Neste salão, onde se privilegia o culto da leitura, das conversas e do bem-estar, foi muitas vezes recebido o cineasta Manoel de Oliveira, um entusiasta dos chás‑dançantes dos anos 20, que aqui regressa para filmar cenas dos seus filmes “Amor de Perdição” (1979) e “Cristóvão Colombo – O Enigma” (2007).
Frequentado “por varios chefes de estado e por muitas notabilidades de todo o mundo” (Revista de Turismo, 1919), o Grande Hotel do Porto recebe hóspedes famosos, como o bailarino/coreógrafo ucraniano Pavlo Virsky, o pianista soviético Sviatoslav Richter e o escritor espanhol Miguel de Unamuno que, em 1907, remete, do Grande Hotel, uma carta ao amigo e escritor Azorín, na qual dedica um poema a Portugal:
“Portugal, Portugal, terra descalça,
encolhida junto ao mar, sua mãe,
chorando saudades
de trágicos amores […];
e, naufragando lentamente, medita,
das suas glórias de oriente,
cantando fados chorosos e lentos” [sublinhado no original]
Este espaço é, por conseguinte, local de eleição para muitas figuras célebres da vida social, política e cultural portuguesa e estrangeira, prestando homenagem aos seus clientes mais ilustres, que veem os seus nomes inscritos em diferentes áreas do hotel, como é o caso das suites temáticas. Uma delas pertence a Eça de Queirós, que passa várias temporadas neste hotel, provavelmente quando se dirige ao Porto para tratar de assuntos relativos à herança da esposa – a quinta de Tormes (Santa Cruz do Douro); de assuntos associados à publicação dos seus livros, pela Livraria Lello (na época, “Livraria Chardron”), ou, simplesmente, para conviver com companheiros de letras.
Mais uma vez, recorremos a uma carta sua, escrita durante uma estada no Grande Hotel do Porto, dirigida ao escritor Luís de Magalhães:
“Querido Luís: Parti hoje do Porto […]. Hoje, na pressa, o criado do Hotel do Porto esqueceu, não trouxe para a estação, uma pequenina caixa de pau contendo um presentinho que a minha Mãe mandava à Maria. Vou escrever para o Hotel, que guardem essa caixa à sua ordem. E Você quando tiver oportunidade a mandará buscar ao Hotel e ma fará dirigir para Paris […]. – E agora um largo e fraternal abraço e sans adieu […] do seu Queirós”.
Entre os escritores que se instalam com regularidade no Grande Hotel, destacamos ainda Guerra Junqueiro, que publica várias das suas obras no Porto, onde se sabe ter declamado versos em vários pontos da cidade, incluindo neste hotel. Como nos conta o poeta Alberto d’Oliveira,
“lembro-me de mil encontros e palestras que melhor chamarei monólogos fulgurantes, em que o poeta nos inebriava com as suas imagens […]. Estou a ouvi-lo recitar os poemetos com que depois formou Os Simples. Ouvimos‑lhos pelas ruas e passeios do Porto, na Praça Nova (ou de D. Pedro), no Palácio, no Hotel do Porto”.
Evidenciando uma clara ligação com nomes importantes da literatura, o Grande Hotel do Porto procura manter o carisma e perpetuar memórias dessas histórias e vivências cristalizadas em fotografias e quadros com dedicatórias de hóspedes especiais que aqui deixaram a sua marca. Dentre eles, e mencionando apenas escritores, destacamos Júlio Dantas, Aquilino Ribeiro, Fernando Pessoa, Volodia Teitelboim, Fernando Namora, Luís de Sttau Monteiro, Eduarda Chiote, Alice Vieira, Margarida Rebelo Pinto e Fernando Assis Pacheco que, em 1990, regista no Livro de Honra as seguintes palavras:
“Já estou tão calhado no Grande Hotel que bem merecia ser considerado uma peça do mobiliário da casa. Tirando isso é isso mesmo: há longos anos que o Grande Hotel é a minha casa no Porto. Sinto-me nele como um pinto no ovo”
e ainda António Lobo Antunes que, em 2004, apresenta, no Grande Hotel do Porto, o romance Eu Hei‑de Amar Uma Pedra, celebrando o 25.º aniversário da sua carreira literária.
Ao longo da sua já vasta história, o Grande Hotel do Porto tem acolhido muitas figuras notáveis das mais diversas áreas, sendo que a presença da literatura é marcante. Ficar no Grande Hotel do Porto significa, pois, mergulhar nesta história, cruzar-se com os que por aqui passaram, mover-se num ambiente único, num espaço privilegiado em termos patrimoniais, históricos e culturais!
Artigo de Ana Cláudia Salgueiro da Silva
Investigadora em Literatura